«Não há maior dádiva do que o amor de um gato»
(Charles Dickens)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ESTRELINHAS

 IN MEMORIAM...


SOPAS – O BOM GIGANTE

Apareceu à porta do nosso prédio e ali esteve durante dois dias e duas noites miando sem parar, à espera que aparecesse uma alma caridosa que dele se condoesse. Era um gato grande, preto e branco, já adulto mas ainda novo. Estava magro, pois provavelmente não comia há bastante tempo. Quando passava alguém, seguia a pessoa para ver se conseguia entrar nalgum dos lotes, cujas portas estavam sempre fechadas. Mesmo dentro de casa, eu podia ouvir os miados do gato e já estava a ficar preocupada com a hipótese de algum vizinho chamar a brigada camarária para a recolha de animais. Tentei dar-lhe comida no logradouro, como já fazia a outros gatos de rua que por ali apareciam. Ele aceitava a comida mas, depois, seguia-me até à porta do prédio, onde ficava a miar. Ao fim do segundo dia, não resisti e deixei-o entrar. Estava com receio da reacção dos outros gatos quando vissem mais aquele desconhecido entrar-lhes pela porta dentro!
Afinal, o que o Sopas (assim lhe chamámos por ele ter aparecido literalmente “às sopas”) queria era mesmo muito uma casa! Instalou-se e nunca mais deu mostras de se querer ir embora. Nunca percebemos muito bem se ele teria sido abandonado, despejado ou se se havia simplesmente perdido. Uma coisa era evidente - tinha pertencido a alguém porque estava castrado. Ainda fizemos algumas diligências para tentar saber se ele pertencia a alguém dos lotes vizinhos, mas sem resultado. E o Sopas foi ficando… e comendo, pois tinha imenso apetite ou, então, passara muita fome. Ao fim de algum tempo, já estava mais gordo e tinha perdido o ar de gato esfomeado. Ficara também muito mais calmo e acedia em ir à rua para fazer as necessidades, pois era demasiado grande para entrar no WC dos gatos, mas assim que terminava, queria logo entrar e miava alto enquanto não lhe abríamos a porta. Pois é… o Sopas tinha autêntico pavor de que o deixássemos novamente na rua, entregue à sua sorte!
Dava-se bem com os siameses mais afectuosos e com as gatas tigradas, e assim-assim com a Flô e com a Patuda, com quem teve, logo no início, duas pegas enormes e nas quais eu é que fiquei a perder pois, ao tentar separá-los, o Sopas ferrou-me os dentes e fui parar ao Hospital de Cascais com alguns ferimentos bastante feios numa das mãos. No entanto, o Sopas era um gato muito afectuoso, embora um pouco bruto por vezes, talvez devido ao seu grande porte e, passado aquele período de adaptação, já ninguém lhe fazia frente e ele, também, não ‘chateava’ os outros gatos. Gostava imenso de fazer e de receber festas, roçando-se nas nossas pernas e ronronando muito, muito alto. Porém, não gostava que o agarrássemos ou, então, quando não queria mais festas, dava-nos uma patada de aviso. Apesar do seu corpanzil, o Sopas parecia às vezes um gatinho pequenino e costumava ter grandes ataques de mimo, durante os quais saltava para o nosso colo e desatava a roncar como o motor de um avião… aquilo não era ronronar… e a amassar e a morder a nossa camisola, como se estivesse a mamar nas tetas da mãe gata. Também fazia a mesma coisa quando apanhava uma das mantas onde costumava dormir. Nós dizíamos, na brincadeira, que o Sopas era um gato muito, muito carente! E a sua carência de afecto estava na proporção dos seus 12 Kg!
O Sopas soube conquistar o seu lugar no clã da Avenida de Sintra, com quem mantinha as melhores relações, especialmente depois do desaparecimento das duas siamesas Flô e Patuda que o toleravam mas nunca simpatizaram muito com ele.
Quando mudámos para a casa nova que possuía um enorme jardim, o Sopas estava verdadeiramente nas suas ‘sete quintas’. Já não precisava de ir à rua (fora do jardim) e, portanto deixou de ter medo que não lhe abríssemos a porta. Abandonou até os seus velhos hábitos de marcação de território, pelo menos dentro de casa. Por isso, começou também a ter acesso a outras divisões que, anteriormente, lhe estavam vedadas. Um dos seus sítios preferidos era o meu quarto, onde batia o sol durante toda a manhã. Quando dávamos por ele, estava muito bem instalado no iglo de verga, gozando dos raios de sol que penetravam através da palha. Como começou a fazer imenso exercício descendo e subindo a escadas de acesso à garagem que ficava ao nível do jardim, o Sopas tinha conseguido perder peso e estava com uns elegantes 10kg! E, se havia um gato verdadeiramente feliz na nossa colónia felina era, sem dúvidas, o Sopas.
Por isso, ninguém estava à espera daquilo que lhe aconteceu. Sempre pensei que o Sopas iria viver longos anos, pois nunca estava doente e parecia imune a todas as mazelas normais nos gatos, tendo sobrevivido inclusivamente ao episódio da coriza que atacou toda a colónia felina, sem nunca sequer ter perdido o apetite. Com o seu enorme corpanzil, o meu ‘bom gigante’ respirava saúde por todos os pelos!
Naquela noite, foi tudo tão rápido que eu não cheguei a aperceber-me de quão grave era o seu estado e acreditei que iria conseguir ultrapassar o problema. Como todas as noites, o Sopas pediu para sair para o pequeno jardim situado na parte da frente da casa, onde gostava de ficar a apanhar o fresco da noite. Quando estava satisfeito, miava alto para o deixarmos entrar, como sempre fizera. Só que, naquela noite, os miados dele tornaram-se aflitivos e desesperados e, quando abri a porta para o deixar entrar, o Sopas estava deitado no chão tentando arrastar-se em direcção à porta de entrada. Percebi imediatamente que alguma coisa de errada se passava com ele, parecia paralisado dos membros posteriores. Peguei nele e trouxe-o para a cozinha, mas ele não parava de miar, um miado aflitivo, com os grandes olhos muito abertos como se estivesse a pedir ajuda. Era já tarde, passava das nove horas da noite, mas o Guilherme telefonou imediatamente para a veterinária, que ainda estava na clínica. Disse-nos para o levarmos o mais depressa possível que ela ficava à nossa espera. Só que vivíamos nos arredores de Mafra, para onde havíamos mudado e até à clínica em Cascais levávamos cerca de quarenta e cinco minutos. Metemo-nos no carro, com o Sopas deitado no banco traseiro, dentro da transportadora, miando cada vez mais desesperado e eu não sabia o que fazer. Mais tarde, quando caí em mim, arrependi-me de não o ter levado ao meu colo, embrulhado numa manta, pois talvez tivesse evitado que ele entrasse em choque, como veio a acontecer.
Quando finalmente chegámos a Cascais, já pouco havia a fazer… a veterinária tentou encontrar-lhe uma veia para lhe ministrar soro, mas ele estava tão mal que não foi possível. E o Sopas acabou por morrer nos meus braços, sem que pudéssemos fazer nada para o salvar. Falou-se em envenenamento, mas nunca foi possível apurar com certezas a causa da sua morte. Não quisemos que fosse autopsiado. Mais tarde, fui descobrir numa parte do jardim que estava por arranjar, uma planta conhecida por “erva-moira” muito tóxica para pessoas e animais. Teria o Sopas ingerido algumas das suas bagas sem querer, quando andava a comer ervas? Tudo indicava que sim pois segundo apurei depois, a ingestão dessas bagas provocava uma intoxicação aguda com paralisia que poderia, inclusivamente, conduzir à morte.
Ainda hoje tenho saudades do meu bom gigante, a minha ‘vaquinha preta e branca’, e questiono-me muitas vezes se poderia ter evitado a sua morte?! A passagem do Sopas pela minha vida acabou por ser tão efémera, que nunca cheguei a ter a oportunidade para lhe demonstrar o quanto o amava. Sinto a sua falta todos os dias…



Sem comentários:

Enviar um comentário