«Não há maior dádiva do que o amor de um gato»
(Charles Dickens)

sábado, 21 de janeiro de 2012

ESTRELINHAS

IN MEMORIAM...


ALBINO – Um Vadio Com Muito Carisma

Desapareceu como havia aparecido – misteriosamente. Não sei, até hoje, o que lhe teria acontecido, pois só um imprevisto muito forte (e grave), faria com que o Albino deixasse de nos ‘visitar’ como costumava fazer ao longo daqueles dois anos. E a sua ausência deixou um grande vazio. Nem sequer uma fotografia dele ficou para ilustrar a sua estória.
O Albino era um gato de rua, aquilo a que se chama um gato vadio ou ‘errante’. Já não era novo, deveria andar pelos 8/10 anos, bastante sofridos, como o atestavam as cicatrizes de guerra que ostentava por todo o corpo. Era um macho, inteiro, de cabeça redonda e corpo maciço. Tinha uma pelagem tabby desmaiada, onde quase não se distinguiam as listas, num tom creme quase branco e uns olhos azuis-claros, lindíssimos. Daí o termos baptizado de Albino. Como pude verificar, depois, consultando um manual sobre gatos, esta despigmentação quer da pelagem quer da íris devia-se, efectivamente, a uma forma de albinismo muito comum em gatos brancos ou quase brancos. E também fiquei a saber que todos os gatos nestas condições são geralmente surdos. Nunca cheguei a constatar isso no Albino, pois ele parecia ouvir-nos bem ou então tinha os outros sentidos mais apurados.
O Albino, ou Binas, para os amigos, apareceu um dia no pequeno jardim fronteiro da nossa casa. Não estava magro, nem aparentava ter fome. Como deduzimos, depois, ao longo dos poucos anos que o Albino frequentou a nossa casa, este deveria ser para ele um procedimento comum e, provavelmente, teria outras casas onde faria a mesma coisa. Uma coisa que eu aprendi com o Albino e outros gatos de rua que me procuram é que, quando se dá comida a um vadio, é para sempre! Enquanto viverem (ou os deixarem viver) eles nunca mais deixarão de aparecer para aquele ritual da comida. Até podem desaparecer durante vários dias, mas retornam sempre para reclamar a refeição a que já se habituaram.
Apesar de vadio, o Binas era manso, embora com certas reservas. Talvez até já tivesse sido um gato doméstico, porque deixava fazer festas sem fugir, mas não se deixava pegar, com excepção de uma altura em que esteve muito doente e nós decidimos levá-lo ao veterinário. No início, aparecia normalmente duas vezes por dia, para uma refeição que comia sem pressas e para uma tigelinha de leite, que adorava. Depois, ficava pela relva, ao sol, lavando-se criteriosamente e passando pelas brasas. Passadas algumas horas, levantava-se e dirigia-se para o Colégio Amor de Deus, que ficava mesmo defronte do nosso prédio, entrava por uma das aberturas da vedação de rede e desaparecia nos terrenos do colégio, onde teria, talvez, a sua base. Ao fim de algum tempo, o Binas começou a aparecer com mais frequência, parecia sentir-se bem com a atenção que lhe dispensávamos.
Nesse Inverno choveu torrencialmente e eu condoía-me quando via o Binas aparecer completamente encharcado. Comecei por lhe improvisar um abrigo num canteiro de cimento que havia ao lado da entrada do prédio, com uma tábua larga e uns plásticos grossos. Coloquei um tapete velho no improvisado abrigo e meti lá dentro o Albino, que imediatamente percebeu que eu tinha feito aquilo para ele se abrigar da chuva. E ficava lá deitado, muito satisfeito e sequinho. Em alternativa, eu tinha colocado num pequeno terraço que existia ao lado do canteiro, um ex-caixote WC coberto. O Albino também percebeu qual era a sua função e abrigava-se lá às vezes, só que se molhava quando a chuva caía com muita força. Assim, ele preferia muito mais o abrigo no canteiro.
Quando ganhou mais confiança, o Albino começou então a entrar dentro de casa, pela porta, pois já não tinha a agilidade dos outros gatos para saltar pela janela da cozinha ou pelo terraço. Entrava e instalava-se numa alcofa que eu havia destinado para ele, na sala, sobre uma cadeira. Ali dormia durante algumas horas sossegado, sem que nada o incomodasse, pois os outros gatos não se aproximavam muito dele, nem sequer se mostravam curiosos. Pareciam perceber que aquele era um gato externo com quem não deviam estabelecer quaisquer relações e iam às suas vidas. Para mim era um descanso e uma segurança, pois não sabia se o Albino sofria de doenças e, embora todos os nossos gatos estivessem vacinados, inclusive contra a Leucose Felina, era um risco que eu não queria voltar a correr. Mas o Albino nem sequer comia dentro de casa e não tentava ir aos pratos dos outros gatos. Ele conhecia muito bem os seus limites – comia na rua, entrava para dormir na cama que lhe estava destinada e ia-se embora quando achava que era altura, reconfortado com aquela trégua benéfica. Às vezes, quando o tempo estava mais frio, passava também a noite, saindo logo pela manhã.
Uma vez, apareceu muito combalido, com uma tosse horrível e febre (era fácil perceber, pois tinha a ponta do nariz muito seca e todo ele escaldava). Levámo-lo ao veterinário onde lhe foi diagnosticado um princípio de pneumonia. Ficou lá internado durante 1 semana! E o Binas era tão carismático que fez amigos na clínica, onde foi tratado com todos os desvelos. Nem parecia um gato vadio!
O Albino melhorou e voltou para a praceta, onde havia aqueles ‘humanos’ amigos que o ajudavam a prosseguir na sua difícil jornada de gato vadio e solitário, que prezava a sua independência. Cerca de dois anos durou esta relação. E um dia o Binas deixou de vir. Logo pensámos o pior! O que lhe teria acontecido para ele faltar ao ritual diário, no qual era certinho como um relógio? Procurei pelas ruas do nosso bairro e imediações e pelos terrenos do colégio, para tentar encontrar algum sinal dele, vivo ou morto, mas nada. O Albino tinha-se evaporado!
E nunca mais apareceu! Ficou um vazio, alguma saudade e um sentimento de respeito pela forma digna e desinteressada como entrara na nossa vida. Bem, talvez não tivesse sido totalmente desinteressada, talvez o Binas quisesse alguma coisa mais de nós, como carinho, amizade e calor humano, para além de uma refeição fresca. Porém, também ele soube retribuir, à sua maneira, com meiguice e gratidão aquilo que tentávamos fazer para minorar as suas penas. Nunca foi agressivo, nunca mostrou mau-carácter. Bem pelo contrário, pela expressão feliz dos seus olhos azuis, podíamos perceber que ele estava grato por aqueles momentos em que tratávamos dele, mas sem forçarmos ou violentarmos a sua independência. Esta seria uma lição que eu aprenderia sobre dignidade felina, uma lição mais para juntar a tantas outras que tenho tido o privilégio de colher ao longo da minha convivência com os gatos.
Obrigada Albino, onde quer que estejas! 

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