«Não há maior dádiva do que o amor de um gato»
(Charles Dickens)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

ESTRELINHAS

 IN MEMORIAM...
                     

FLÔ E PATUDA – UM AMOR A TODA A PROVA

A Flô era uma siamesa muito doce, com um olhar extremamente estrábico, que é, aliás, uma característica marcante dos gatos siameses. A esse respeito há uma lenda sobre a origem desta raça, dizendo que foi por guardarem o pote do tesouro do rei do Sião com tal empenho, enrolando nele as caudas e olhando-o fixamente, que os gatos siameses – Royal Cat of Siam – ficaram com aquele olhar estrábico e as caudas com um nó na ponta. Actualmente, essas já não são as características que definem o gato siamês, quanto à pureza da raça.
A Flô tinha nascido ainda em casa de meus pais, pouco depois de regressarmos de Macau. Os pais eram o nosso gato siamês, o Pamplinas e a Flô, uma gata cruzada de siamesa que havia sido recolhida por eles. Como nem um nem outro estavam esterilizados, foram produzindo várias ninhadas que conseguíamos dar a amigos e conhecidos. Mas a Flô (filha) era tão engraçada e tinha um olhar tão doce que decidimos levá-la para fazer companhia ao nosso Timmy “macaense”. Passado algum tempo, e em virtude de minha mãe ter ficado doente, o Pamplinas veio para nossa casa e, antes que tivéssemos esterilizado a Flô, ela ficou à espera de gatinhos!
Da sua primeira ninhada nasceu o Spakana. A seguir ao seu filho Becas, o Spakana é um siamês verdadeiramente extraordinário. Não vou agora falar sobre ele porque, felizmente, ainda está vivo e de boa saúde, vive connosco, já com a provecta idade de 19 anos!
Da segunda ninhada da Flô, desta vez com o Spakana como progenitor, nasceu a Patuda, mais conhecida por Rodinhas ou Rodinhas Baixas, por causa da sua baixa estatura, pequenina e compacta, de patinhas curtas, igualzinha à avó materna, Flô.
A Flô e a Patuda eram tão unidas, mas tão unidas, que uma não sobreviveu à morte da outra! Eram inseparáveis, e via-se que nutriam um grande amor uma pela outra. Faziam tudo juntas, até quando davam tareias às duas pobres tigradas, Mini e Miúcha, que havíamos recolhido na rua onde vivíamos. Ao contrário dos outros quatro siameses que tínhamos, Spakana, Becas, Buzina e Pantufa, que se davam bem com qualquer gato, mesmo de outras raças, a Flô e a Rodinhas possuíam um verdadeiro espírito de clã. Gato que não pertencesse ao clã siamês, era proscrito, discriminado e levava tareias monumentais. A única excepção era o Timmy, porque fora criado com a Flô desde que ela era pequenina e eram verdadeiros amigos do coração.
Se a Flô era meiga connosco e, de uma maneira geral, com todos os humanos que iam lá a casa, a Patuda era um verdadeiro pote de mel. Dormiam ambas comigo, mas a Patuda deitava a cabeça no meu antebraço, como se fosse uma pessoa. Posso mesmo afirmar que, a seguir à Flô, a sua mãe felina, ela achava que eu era a sua mãe humana e demonstrava por mim uma verdadeira adoração. A doce Patuda só se transfigurava quando via alguma das gatas tigradas. Era como se fosse o Doctor Jeckill e o Mister Hyde! Aí, parecia um autêntico carro de assalto e partia para o confronto a uma velocidade tal que as outras desgraçadas nem tinham tempo para fugir!
Já a Flô era uma autêntica lady gata, sempre com um ar altivo, muito digno e sereno, uns amendoados olhos azuis, muito estrábicos, que observavam tudo e todos à sua volta. Parecia mesmo a deusa-gata egípcia Bastet, quando impassível e muito direita, com a cauda elegantemente enrolada sobre as patinhas, se sentava debaixo da luz de um candeeiro. Os outros gatos respeitavam-na e sabiam perfeitamente que ela era a matriarca do clã. Mesmo o Timmy, que era o gato mais velho da casa e que deveria, muito naturalmente, ser o chefe, cedia esse papel à Flô, que conhecia desde pequenininha. No entanto, a Flô podia comportar-se também como uma gatinha brincalhona e era a maior gata gourmet que eu já havia visto, apreciando os bons petiscos cozinhados pelo chef lá de casa. O seu petisco preferido era o camarão, cozido ou cozinhado de qualquer outra maneira. Cheirava a milhas quando havia uma refeição de camarão e ficava atenta, impávida e serena, à espera que lhe puséssemos à frente o seu pratinho com uma porção de camarão todo partidinho que ela devorava com apetite. E repetia duas ou três vezes. Quando ficava satisfeita, ia sentar-se no terraço, ao sol, dando início a uma longa sessão de higiene e beleza. E por ali ficava, estirada, apanhando banhos de sol, uma das coisas que ela mais gostava de fazer, sempre na companhia da inseparável Patuda.
No último dia de Dezembro de 2001, tínhamos saído para celebrar a passagem de ano numa festa com uns amigos e, quando regressámos a casa de madrugada, a Patuda estava muito aflita, espirrando incessantemente e com alguma dificuldade em respirar. Na manhã seguinte levámo-la ao veterinário onde foi tratada com antibióticos, mas a médica de serviço foi-nos avisando que a coriza, doença que atacara a Patuda, era viral e os antibióticos não faziam muito a não ser tratar a infecção respiratória que ela já tinha. Entretanto, a Patuda deixou de comer e recusava-se mesmo a beber água. Depois, adoeceu a Flô exactamente da mesma maneira que a filha, porque estavam sempre juntas e, por mais medicamentos que tomassem não havia maneira de melhorarem. Como não comiam nem bebiam absolutamente nada, tiveram de levar soro, na clínica veterinária. Acabaram por ficar assim durante todo o mês de Janeiro, sem se alimentarem e sem reagirem à medicação.
Em desespero, víamos que nada resultava e parecia mesmo que elas estavam a desistir de lutar, ficando cada vez mais fracas. A Flô, talvez por ser a mais velha, piorou bastante e a veterinária disse-nos que já não havia nada a fazer por ela. Eu bem tentava dar-lhe papas de bébé e água com uma seringa e, por vezes, ela ronronava, deixando-me cheia de esperanças por pensar que ia melhorar, mas sem sucesso. E chegou o dia de tomarmos a decisão mais dolorosa das nossas vidas, mas não podíamos deixar arrastar o seu sofrimento por mais tempo…
Voltámos para casa destroçados e, nos dias que se seguiram, apesar de todas as minhas desesperadas tentativas para dar papas de bébé à Patuda como havia feito com sua mãe, ela recusava-as e piorava de dia para dia, principalmente depois do desaparecimento da Flô. Haviam passado apenas quatro dias sobre a morte da mãe e naquele Domingo, a Patuda estava tão mal, que fomos obrigados, pela segunda vez, a tomar a dolorosa decisão... Estive várias horas deitada sobre a minha cama com o amado corpinho da Rodinhas aconchegado ao meu peito, como ela fazia quando dormíamos juntas, chorando lágrimas muito amargas, e tentando adiar a despedida inevitável. Depois, embrulhei-a na mantinha dela e levei-a ao colo até à clínica. Fiquei abraçada a ela enquanto a médica lhe procurava a veia onde lhe ministrou as injecções que a puseram a dormir para sempre.
A Flô e a Patudinha estavam novamente juntas… um imenso amor as unira na vida e na morte! Para mim, aquelas duas siamesas foram o exemplo do amor maternal e filial de que são capazes esses seres extraordinários que são os gatos, pelo menos, os gatos da minha vida.
Comigo ficará, para sempre, a sua terna recordação, capaz de aquecer a minha alma quando penso nelas. Mas ficarão, igualmente, a enorme dor, o sofrimento, um misto de sentimentos devastadores de culpa e pesar que experimentei ao ter de tomar a dolorosa e extremamente pessoal decisão de as eutanasiar. A imagem desses momentos nunca mais se apagará da minha memória, enquanto o meu coração bater!




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